A CERVEJA NA IDADE MÉDIA

Na Idade Média, a produção e consumo de cerveja tiveram um grande impulso, muito por causa da influência dos mosteiros, locais onde este produto era não só tecnicamente melhorado, como também produzido e vendido. Naquela altura, os mosteiros seriam algo semelhantes a um  hotel para viajantes, oferecendo abrigo, comida e bebida a peregrinos e não só. E para além dos monges, a História relata-nos também o envolvimento de santos em milagres e outros acontecimentos em que a cerveja vem mencionada! Tomemos como exemplo o caso de S. Mungo, o padroeiro da mais velha cidade da Escócia, Glasgow. Foi nessa cidade que, por volta de 540 d.C., S. Mungo estabeleceu uma ordem religiosa, cuja principal actividade seria a produção de cerveja, sendo que esta arte é ainda hoje considerada como a mais antiga indústria da cidade. Outro exemplo será o de Santa Brígida que miraculosamente transformou a água do seu banho em cerveja, para que os seus visitantes clericais tivessem algo para beber. Para se ver a importância que a igreja tinha para a indústria da cerveja nessa época, basta referir que existiam três santos padroeiros, protectores da cerveja e dos cervejeiros: Santo Agostinho de Hippo, São Nicolau e São Lucas, o Evangelista.

Também neste período se manteve o hábito de produzir cerveja em casa, sendo que essa tarefa continuava maioritariamente entregue às mulheres. Sendo elas as cozinheiras, tinham igualmente a responsabilidade da produção de cerveja, que era vista como uma “comida-líquida”. Em certas zonas, a cerveja chegou mesmo a ser mais popular do que a água já que, como é sabido, a Idade Média era uma época onde as práticas sanitárias eram muito más, pelo que se tornava mais seguro beber cerveja do que água. De facto, o processo de fabrico fazia com que muitas das impurezas fossem filtradas pelo que quem pudesse fazer a troca de água por cerveja raramente hesitava.

No norte britânico, a cerveja (ale) era fabricada em casa, pelas mulheres, para auto-consumo, ou vendidas nas alehouses - matrizes do pub moderno -, nas tabernas e estalagens. Sujeita aos imperativos naturais, a cerveja era produzida entre Setembro e Abril, os meses frios. À medida que a sua importância cresceu, a produção e venda foi sendo alvo de vários regulamentos, chegando mesmo a ser criada a figura do ale-conner, o fiscal que testava e sancionava a qualidade da cerveja. Em 1188, Henrique II lançava um imposto sobre a cerveja destinado à subvenção das Cruzadas.

Nos mosteiros, as técnicas de fabricação iam sendo desenvolvidas, em busca de uma cerveja mais agradável ao palato e mais nutritiva. A importância da qualidade alimentar da cerveja era algo de relevante para os monges, dado que era um produto que os ajudava a passar os difíceis dias de jejum. Esses períodos caracterizavam-se pela abstinência dos monges em termos de comida sólida, mas nada os impedia de ingerir líquidos. Há relatos de monges que foram autorizados a beber até 5 litros de cerveja por dia. Isso só os incentivou a produzir mais e melhor cerveja, chegando ao ponto de se criarem pequenas tabernas nos mosteiros onde era cobrada uma pequena taxa para que as pessoas pudessem experimentar a cerveja de alta qualidade que ali se produzia. Em termos técnicos, os monges deram uma maior importância ao uso do lúpulo, substância que tornava as cervejas mais frescas devido ao seu amargor natural e que, por outro lado, as ajudava a conservar. Ao dosearem a quantidade de malte e lúpulo, passaram a produzir uma cerveja com pouco álcool para consumo diário e uma cerveja mais pesada e alcoólica para ocasiões festivas. Uma contibuição fundamental da produção cervejeira monástica foi o emprego de algumas sementes, como o mirto de Brabante e o gruyt (ou gruut) - mistura de ervas aromáticas - que também actuavam como bons conservantes da cerveja. Esta indústria teve tal sucesso que chamou a atenção dos nobres e soberanos, que passaram a cobrar pesadas taxas sobre a venda deste produto. Em certas zonas, chegou-se ao ponto de só ser permitida a produção de cerveja mediante autorização régia, envolvendo isso, claro está, o pagamento de uma determinada quantia. Infelizmente, esta ganância levou ao encerramento de muitas tabernas de abadias e mosteiros, que não conseguiram acompanhar as elevadas taxas que lhes eram impostas. Os conventos mais antigos a iniciarem a produção de cerveja foram os de St. Gallen, na Suíça, e os alemães Weihenstephan e St. Emmeran. Os beneditinos de Weihenstephan foram os primeiros a receber, oficialmente, a autorização profissional para fabricação e venda da cerveja, em 1040 d.C. Com isso, esta é a cervejaria mais antiga do mundo  ainda em funcionamento e é hoje conhecida, principalmente, como o Centro de Ensino da Tecnologia de Cervejaria da Universidade Técnica de Munique.

Entretanto, o interesse pela indústria cervejeira fixava-se para além dos muros cenobitas. No século XII, os cervejeiros de ofício suplantavam os monges, facto a que não era estranha a importância dos impostos sobre a produção e comércio. Por sua vez, a Igreja também cedia na exclusividade dos seus privilégios, ao conceder direitos de produção a cervejeiros em várias localidades.

 

Apesar das muitas limitações, a cerveja continuou a ganhar importância na sociedade medieval, servindo como alimento, forma de pagamento de taxas, moeda de troca, entre outras funções social e economicamente relevantes. Essa importância é facilmente constatável em actos e leis de nobres e reis, que visavam proteger a produção e os rendimentos que daí advinham. Em 1295, o rei Venceslau garantiu à Pilsen Bohemia direitos de produção de um tipo de cerveja, numa área que é hoje ocupada pela República Checa. Em 1489, foi autorizada a criação da primeira associação (guild) de produtores de cerveja  - a Brauerei Beck. E, como curiosidade, refira-se que quando Cristóvão Colombo chegou às Américas, descobriu que os nativos já produziam uma bebida muito semelhante à cerveja, feita a partir de milho. Todavia, seriam os ingleses que, em 1548, introduziriam a verdadeira cerveja nesse continente.

Até praticamente ao fim da Idade Média, a cerveja europeia dividia-se pelo emprego de distintos aromatizantes, plantas silvestres, como o mirto generalizado na região escandinava mas proibido na Inglaterra, ou o gruyt (um composto de ervas aromáticas) utilizado noutras regiões do norte da Europa. O lúpulo (humulus lupulus), conhecido sobretudo na Europa central, viria a destacar-se como aromatizante de superior qualidade e pelas notáveis propriedades anti-sépticas. No século VIII, o lúpulo dá sinais de existência na Boémia e na região de Hallertau, na Baviera alemã (actuais grandes regiões produtoras). Em 768, Pepino-o- Breve concede plantações de lúpulo à abadia parisiense de Saint-Denis. Já em 1364, Carlos IV, imperador da Alemanha, promulga o Novus Modus Fermentandi Cervisiam, que estabelecia o novo modo legal de brassagem, com recurso ao lúpulo. Esta disposição evidencia, por um lado, a diversidade política e económica que pendia sobre a produção cervejeira: o ducado de Brabante, dependente do império alemão, adopta o lúpulo; a Flandres, dependente da coroa francesa, mantém-se na órbita dos direitos sobre o gruyt;  em Inglaterra, a típica ale é, ainda então, a cerveja não lupulizada.

 

1516 é uma data de grande proeminência para a produção de cerveja na Alemanha. As guildas bávaras, tentando precaver os seus interesses, pressionaram as autoridades para a criação de uma lei que defendesse a produção de cerveja de qualidade. De facto, utilizavam-se ingredientes muito estranhos para aromatizar as cervejas como, por exemplo, folhas de pinheiro, cerejas silvestres e ervas variadas. Foi assim que o Duque Wilhelm IV da Baviera criou a Reinheitsgebot - lei da pureza - que tornou ilegal o uso de outros ingredientes no fabrico de cerveja que não fossem água, cevada e lúpulo (é de salientar que nesta época ainda não se conhecia e utilizava conscientemente a levedura). O crescimento das exportações fez com que muitas cidades alemãs ficassem famosas, nomeadamente Bremen, que era um importante entreposto na exportação de cerveja para a Holanda, Inglaterra e Escandinávia, e Hamburgo, que era o principal produtor da Liga Hanseática, sendo que por volta de 1500 existiam aí cerca de 600 produtoras independentes. A Liga Hanseática chegava a exportar cerveja para locais tão longínquos como a Índia. Braunschweig e Einbeck também eram importantes centros de produção de cerveja. Uma das marcas mais conhecidas da altura e que, por sinal, ainda hoje produz cerveja é a Beck's, criada em 1553. Quanto a Munique, provavelmente a mais conhecida cidade cervejeira da Alemanha, laboravam já as famosas Brauerei Lowenbrau (1383), Spaten-Franziskaner-Brau (1397) e a Hacker-Pschorr Brau (1417).

Por sua vez, a cerveja penetrava, ainda que timidamente, em Espanha. Carlos I, de origem flamenga, coroado rei de Espanha (Carlos V), senhor de um vasto império e grande amante de cerveja, estabelece o fabrico da bebida em 1537, a cargo de um mestre flamengo; quando abdica do trono e se recolhe no mosteiro de Yuste, em 1556, também instala aí o fabrico de cerveja. Em 1542 há já uma fábrica em Sevilha e nas primeiras décadas do século XVII há notícias de mestres cervejeiros ingleses, flamengos e de outras nacionalidades em Madrid. No final da centúria, há duas fábricas na capital castelhana autorizadas por decreto real: a de J. Hamershap e outra de H. Coremann, alemão. Em 1701, a produção cervejeira seria declarada monopólio estatal e, por sua vez, o Estado arrenda o fabrico a particulares, como a família Coremann (Real Fábrica de Cerveza). Em Portugal, há notícias da existência de uma fábrica de cerveja em Lisboa, em 1689; contudo, o futuro imediato desta bebida no país estava comprometido pelos implacáveis interesses vinhateiros.

No Novo Mundo, mais propriamente em Chalco (México), sob o domínio castelhano, a produção de cerveja teve início em 1544. Na Virgínia americana, em 1587, os colonos fabricam cerveja (ale) a partir de milho (o primeiro carregamento de cerveja inglesa só chegará à colónia em 1607); em 1612, abre em Nova Amesterdão (Nova Iorque) a primeira fábrica de cerveja, fundada por Adrian Block e Hans Christiansen; no ano de 1683, William Penn, fundador da Pennsilvânia, ergue uma fábrica cervejeira em Peonshury.

Ao longo dos séculos XVI e seguintes, a exportação de cerveja continuou a ganhar crescente importância, ao passo que novas empresas iam sendo criadas. No entanto, foram necessárias duas invenções para trazerem a produção de cerveja para a Era Moderna: a primeira foi a máquina a vapor, inventada por James Watt e a segunda foi a refrigeração artificial, ideia de Carl von Linde. Nessa altura, estava já cientificamente provado que a produção de boa cerveja dependia da existência de determinadas temperaturas. Dado que essas temperaturas ocorriam essencialmente no Inverno, a invenção de von Linde permitiu que se produzisse e consumisse cerveja ao longo de todo o ano.

 

Nós importamos, você aprecia!

Crie o seu site grátisWebnode