O dono do Domaine de la Romanée-Conti fala de seus vinhos extraordinários e explica por que eles são inimitáveis

Por Guilherme Rodrigues

 O francês Aubert de Vilaine desfruta de uma das posições mais invejadas do mundo. É co-proprietário e administrador do mítico Domaine de la Romanée-Conti. Tem o privilégio de viver em meio aos mais fantásticos vinhedos da terra e numa das mais civilizadas regiões do mundo, a Bourgogne. E também de elaborar, a cada ano, vinhos soberbos. Em termos de atividade atraente e, por que não dizer, saudável, poucos seres humanos podem rivalizar com ele. O vinhedo Romanée-Conti propriamente dito abrange apenas 1,8 hectare, e seus limites se encontram registrados pelo menos desde 1480. Inicialmente, era identificado como o "Clos de Saint-Vivant", em meio à vinha de mesmo nome, cultivada pelos monges beneditinos a partir do século XIII. De lá para cá, mudou poucas vezes de mãos. Foi vendido pelos religiosos à família Croonembourg, ligada aos duques da Bourgogne. Na ocasião, batizaram-no de Romanée. Em 1760, esteve no centro de uma grande disputa entre Madame de Pompadour, amante do rei Luís XV, e de seu arqui-rival, o príncipe de Conti, que acabou vencendo a briga. Entretanto, pagou uma soma espetacular pelo vinhedo. Desde esse período, o nome do príncipe foi associado à vinha. Tanto que até hoje a propriedade é conhecida como Romanée-Conti.

 Durante a Revolução Francesa, ela acabou confiscada pelo Estado e vendida ao banqueiro de Napoleão. Em 1869, os ancestrais de Aubert de Vilaine a compraram como a jóia da coroa de uma propriedade vinícola que media 140 hectares. A região vivia grande prosperidade, iniciada em 1840. A alegria acabou com a chegada da Phylloxera vitifoliae, a praga da videira. A propriedade veio a ser dividida posteriormente, e a família De Vilaine ficou com a parte de Vosne Romanée. Assim começou o Domaine de la Romanée-Conti, também conhecido por DRC, hoje abrangendo um total de 25 hectares dos mais soberbos vinhedos Grand Cru. Os descendentes souberam mantê- la. Em 1942, a família Le Roy se associou à De Vilaine, adquirindo uma parte do Domaine. Segundo Aubert, que começou a trabalhar ali em 1964, foi um fato muito bom. Hoje em dia os vinhos com rótulo DRC são os mais disputados no mundo, não só pela origem dos mais espetaculares terroirs, como pela qualidade e personalidade inigualáveis. Embora sejam os mais velhos do mundo, revelaram-se igualmente os mais contemporâneos. As vinhas são cultivadas pelo método biodinâmico, com uma espécie de atualização dos melhores princípios que se praticavam já no século XIX.

 Consciente do patrimônio incalculável que tem em mãos, De Vilaine aponta os três grandes estágios pelos quais passou: os monges; os nobres e a realeza; e as famílias produtoras. O grande vinhateiro esteve recentemente no Brasil, trazido por sua importadora, a Expand, de São Paulo (tel. 11/3847-4747, www.expandgroup.com.br), para lançar os gloriosos vinhos da safra de 2004. Na ocasião, concedeu a seguinte entrevista a GULA.

 

Por que as encostas da Côte d'Or, na Bourgogne, onde se localiza o Domaine de la Romanée-Conti, produzem vinhos tão soberbos?

O privilégio começou há milhões de anos, quando transformações geológicas criaram os Alpes, muitas falhas geológicas e uma espécie de "patchwork" (colcha de retalhos) de rochas bem fragmentadas. Além disso, houve lenta erosão. Apareceram nossas encostas, nas quais a superfície da terra se revela argilosa. No subsolo, porém, há uma complexa combinação rochosa. As encostas são voltadas para leste, o que é perfeito, com seus retalhos de solo mais ou menos diferentes. Também precisamos levar em conta os microclimas favoráveis.

 

Até aí foi a natureza. Quando começou o milagre do homem?

O primeiro foi a chegada dos monges, os beneditinos de Cluny e os cistercienses. Entre os anos 1000 e 1100, eles receberam as terras para lavrar. Na época, eram também cientistas e tinham a alta tecnologia. Aos poucos, descobriram que nas encostas da Côte d'Or os vinhos eram diferentes, conforme vinham deste ou daquele local. Uns melhores, mas com qualidades diferentes; outros piores. Evidentemente, isso não ocorreu em uma geração. Outro milagre é que a idéia se perpetuou através dos tempos. O desenho se completou mais ou menos no século XVI, quando cada lugar ou vinhedo já tinha seu nome, limites e a hierarquia entre eles estava definida, como vemos ainda hoje.

 

É só uma questão de solos? Qual é o conceito de terroir?

Não são apenas os solos distintos. Também há a ambientação de uma única casta, a Pinot Noir. Ela foi refinada pelos monges. Isso mesmo: uma única casta, idéia extraordinária na qual a Bourgogne se revelou pioneira. É o reinado do terroir. Somos baseados totalmente nessa idéia. Os locais são delineados e dispomos de uma única casta perfeitamente adaptada através dos séculos, para expressar ao máximo o caráter desse local. Fora da Bourgogne, a Pinot Noir é muito difícil, não tem muito gosto por si. Em nossa região, apresenta o gosto do terroir, a expressão do solo. Essa é a alma que faz a Bourgogne única e difícil de imitar. O solo e a casta se combinam para criar o terroir. Também temos os microclimas, mas o fundamental são o solo e a casta.

 

A filosofia dos monges, de 1000 anos atrás, ainda é atual?

Eles operaram o milagre numa época em que não existia a ideologia do lucro. A motivação única era trabalhar pela glória de Deus. E também fazer o vinho melhor que os outros, uma competição sadia de boa reputação. O milagre, em minha opinião, é que essa idéia do terroir ainda está aí, mais viva do que nunca, apesar das revoluções, dos problemas e das transformações através dos séculos. Os vinicultores da atualidade, mais que nunca, cultuam essa idéia.

 

A ciência moderna comprova o terroir?

Confirma plenamente que ele existe, é uma realidade. Todas as pesquisas em solo e microclima a respaldam. O que temos hoje foi criado empiricamente, mas corresponde rigorosamente a uma realidade natural. A idéia do terroir foi defendida através dos tempos, pelos duques da Bourgogne, pelo rei da França, contra a Phylloxera, e assim sucessivamente.

 

De que modo a Phylloxera vitifoliae, assolando a Bourgogne por volta de 1880, mudou a região?

As pessoas ficaram muito preocupadas. Quando a praga chegou, as vinhas tinham 200, 300 anos de idade. Apresentavam naturalmente baixos rendimentos. Mas isso acabou com a instalação da praga. Foi uma mudança severa. A idéia de perpetuação do vinhedo teve de ser esquecida. Para replantá-la, era preciso usar vinhas novas.

 

Houve outras mudanças significativas?

Também o método de Guyot de condução da vinha, que por sinal apareceu um pouco antes da Phylloxera, já havia começado a levar na direção do replantio e de uma maior produtividade. Depois, com a chegada da mecanização, em meados do século XX, houve a fertilização química e a abertura dos grandes mercados. Então, a região foi levada à maior produção. Só nos anos 1980 a consciência voltou. Penso que o DRC foi um dos primeiros a entender que, na Bourgogne, para fazer grandes vinhos, era preciso voltar, diminuir rendimento, entre outros fatores. Não podiam ser exatamente as mesmas condições da era pré-Phylloxera, até porque hoje temos de enxertar a vinha. Mas o restante deveria retornar aos antigos tempos. É o que tentamos fazer no Domaine. Não com uma idéia retrógrada, mas sim com intuito de evoluir, de andar para a frente, seguindo o que de bom tem a tradição.

 

Qual é a melhor Pinot do Romanée-Conti?

Há diferentes tipos de Pinot. Existem milhares de variedades dessa uva. Desde as muito produtivas até as de baixíssimo rendimento. Algumas ostentam grandes cachos, em outras eles se apresentam pequenos. Para grandes vinhos, devem ser usadas as pouco produtivas. No Romanée-Conti, estão plantadas variedades muito finas, e são elas que reproduzimos nas novas plantações. É uma seleção massal clonal. Para fazer grandes vinhos, convém ter variedades muito finas, diversidade e vinhas velhas. Se combinarmos as três coisas, temos tudo, estamos no céu.

 

O DRC planeja comprar mais vinhas?

Sim, se pudermos. Em 2006, tentamos adquirir as vinhas do Domaine Engel. Pensamos que tínhamos comprado. No último minuto, o vendedor escolheu, em vez de nós, Pinault, o tycoon francês. Ficamos tristes. Eram preciosos 0,5 hectare de Grands Echézeaux, 0,5 hectare de Echézeaux, e a melhor parte, que teríamos adorado, 1,50 hectare de Clos Vougeot, de sua melhor parcela. Teria sido fantástico! Infelizmente, perdemos uma oportunidade única, que nunca vi na vida. Não foi questão de preço, porém uma escolha do vendedor. Preferiu um investidor a um produtor. A venda se deu por 13 milhões de euros.

 

É verdade que, no DRC, devolve-se a terra que escorre com chuvas aos vinhedos?

Sim, mas hoje fazemos menos isso, porque estamos cada vez mais experientes. Nos anos 50, com a mecanização, o vinicultor achava fantástico os tratores, arados. Escorria muita terra para as partes mais baixas da vinhas. Era preciso devolver o solo à origem. Agora, estamos mais conscientes sobre o que fazemos. Refletimos mais. O solo se porta melhor, temos menos erosão, escorre menos terra.

 

Qual é a principal vantagem das abordagens orgânica e biodinâmica?

Quando o solo é cultivado de modo orgânico por aproximadamente dez anos, acaba tendo uma absorção melhor de água. Muito melhor para o terroir.

 

O que faz o vinho Romanée-Conti tão desejado?

Uma combinação de fatores. Primeiro, sua qualidade. Sua vinha está no coração da Bourgogne. É muito importante ver a disposição dos Grand Cru. O Romanée- Conti está no meio. La Grand Rue, La Tâche, Richebourg... A posição e o resultado são a qualidade, a finesse. As características não são o poder da força, mas o da elegância. Existe algo na base, a qualidade do vinho; a idéia do terroir; a história, o príncipe de Conti associado; os arquivos centenários; a escassez, são no máximo 6 000 garrafas por ano, em média. Tudo isso alimenta o mito do Romanée-Conti.

 

E como explicar o mito do DRC como um todo?

Penso que é porque possuímos a melhor parte do Richebourg, pegada ao Romanée-Conti. Além disso, precisamos levar em conta o tamanho, o que é muito importante. Temos metade do Richebourg e, assim, nos demais Grand Cru. A combinação desses fatores cria algo a mais.

 

O senhor veio ao Brasil lançar a safra de 2004. Como se comportou o ano?

No fim de agosto de 2004, estávamos preocupados, pois as coisas não corriam bem. Tivemos granizo. Não muito, mas inquietantes. Porém, aconteceu um dos milagres da Bourgogne. De repente, o tempo mudou e abriu um clima glorioso durante a vindima. As reservas de água no subsolo eram boas para uma maturação perfeita. O açúcar desenvolveu-se depressa, excelente maturação fenólica. Depois, houve uma maravilhosa evolução nos barris. Conseguimos fazer vinhos finos em 2004. Não como em 2005, quando tudo deu certo do começo ao fim. Entretanto, temos muita qualidade, elegância e, sobretudo, sedução.

 

Publicada na edição 183 (Janeiro/2008) da Gula

 

 

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